Ultra Trail Mont Blanc

No dia 3 de Setembro, o Kaká Jesus atinge o ponto mais alto da sua vida desportiva. Finalmente cumpre o sonho e termina a Prova do Trail Running – o Ultra Trail Mont Blanc.

Pouco mais de 42 horas depois do tiro de partida, que se deu ao som da música  Conquest Paradise dos Vangelis, o Kaká finalmente corta a linha da meta e escreve o primeiro parágrafo de uma história que marcará para sempre a sua vida e a vida da Associação Beat Your Limit!.

Um momento inspirador que fica registado pelo relato na primeira pessoa que vamos apresentar de seguida. Não deixem de ler até ao último parágrafo, pois estamos certos que muitas lágrimas vão escorrer pela vossa cara e muitos arrepios irão sentir. Inspirem-se por mais um grande feito desportivo do Kaká.

Do sonho à realidade em 167 km…

As preocupações com o Ultra Trail Mont-Blanc (UTMB) começaram bem cedo para mim, uma vez que no início do ano me deparei com uma lesão no joelho que quase deitou tudo a perder. Não pude sequer gozar a sensação de finalmente ter sido selecionado para a prova! A minha preparação foi limitada durante um certo tempo, não conseguindo até participar em algumas provas que tinha planeado como preparação para esta grande batalha, como foi o caso do Madeira Island Ultra Trail (MIUT). Ainda assim, com confiança, foram meses de muito sacrifício, muita dedicação, muito trabalho e muitos quilómetros nas pernas. O trabalho de casa foi feito e esperava, por isso, a devida recompensa.

No dia 29/08, terça-feira, estou de partida para Chamonix, com a minha mulher (Cristina) e recebo então a minha primeira injeção de boas energias. A minha querida equipa Associação Beat Your Limit! (BYL!) colocou uma tarja nas redes do aeroporto com a seguinte mensagem: ”Chegou o momento. Bem-vindo ao sonho. Concretiza-o por nós!” Não há palavras para descrever a emoção, e ao mesmo tempo o sentido de responsabilidade, que nos invade com estas demonstrações de carinho. São muitos corações a bater por nós… Obrigada grande família!

Partimos então para Genebra, na companhia dos companheiros que iriam partilhar a casa connosco, a Sofia seguia no voo da tarde.

Chamonix a terra dos sonhos, onde se vive e se respira Trail ao longo de toda a semana. As vistas são deslumbrantes, de cortar a respiração mesmo. Sente-se uma adrenalina, um ambiente fantástico, que emoção estar ali…

O dia da prova não chegava e a ansiedade crescia de uma maneira como nunca tinha sentido. À medida que os dias iam passando, as notícias pioravam. As condições climatéricas eram adversas ao ponto da organização se ver obrigada a fazer pequenas alterações no percurso da prova rainha, proibindo que se ultrapassassem os 2600 metros de altitude. O desconforto e a preocupação eram evidentes na cara de todos os atletas. Começa então a “caça” à roupa quente, casacos impermeáveis e até luvas de cozinha…tudo valia para enfrentar este desafio.

Os “Chamonixenses”, os meus companheiros e amigos de casa, estavam também muito preocupados com o estado do tempo, mas a partilha de informações, experiências e de possíveis soluções estiveram sempre presentes. Sentir este companheirismo, e a preocupação de uns pelos outros, foi um tónico extra para mim.

Entre a partida do PTL, passando pelo CCC, TDS e OCC lá chegou a hora da verdade, a partida do UTMB, a partida para a realização de um sonho. Entre nervos, lágrimas, abraços e beijinhos lá nos posicionamos na linha de partida. A elite à frente, como habitualmente, seguida do resto da multidão. Bem cá atrás estava eu, o Vitor Coelho, a Sofia Coelho e o Paulo Alves. Éramos quase os últimos 😉

Ao som de Vangelis, e com as emoções à flor da pele, inicia-se o countdown para uma das maiores aventuras da minha vida.

O ambiente era fantástico, a vila de Chamonix quase vinha abaixo com os milhares de pessoas espalhadas pela rua. Senti-me um verdadeiro herói, mesmo que desconhecido, para toda aquela multidão. Gritava-se por Portugal à nossa passagem porque o Vítor levava a bandeira presa num bastão 😉

Os primeiros 8 km, até Les Houches, foram de consagração, tal era a forma como éramos acarinhados pelas pessoas que inundavam as ruas. Entramos num trilho bom, mas o pelotão era imenso e, por isso, passar esta malta toda iria ser uma luta.

Fiz a primeira subida em modo tranquilo, num constante zigue zague, que cruzava uma pista de ski e com vistas deslumbrantes. De facto os Alpes apresentavam-se no seu melhor! Segue-se a descida para o primeiro abastecimento, em Saint Gervais, onde chego com o Vitor. A noite estava fria e, por isso, visto o corta-vento. De frontal já ligado, arranco para uma escalada de quase 25 km, até ao abastecimento de Les Contamines. O mau tempo anunciado começa a dar o ar da sua graça, lá no alto, aos 2500 mt. A meio do percurso começo a sentir os efeitos da altitude (já tinha percebido que não lido bem com a ela, a subida Aiguille du Midi dias antes foi o exemplo). Dores de cabeça e ouvidos, tonturas, pernas pesadas… O corpo parecia querer ceder. Quando me sinto quase a desmaiar aparece-me um banco, no meio do nada, em pleno trilho. Nem sei explicar. Parecia ter sido ali colocado só para mim. Fui a tempo de me sentar, respirar fundo, e tentar acalmar. Bebo o primeiro gel e ligo à Cristina, em desespero, com lágrimas nos olhos… Como era possível concluir esta prova, quando ainda no início me sentia assim tão mal, sem forças, e com um peso no corpo?! Ela tenta acalmar-me e pede-me que siga ao seu encontro, até ao abastecimento, onde esperava por mim. Saber que ela lá estava deu-me forças para seguir.

Ao entrar no abastecimento deparo-me com um cenário de “quase guerra”. Malta aos magotes, chão enlameado, não havia lugar para me sentar e poder ser assistido pela minha equipa de apoio… Avisto o Vítor, que tinha sido a minha companhia até me ter sentido mal, dou-lhe um abraço e em lágrimas digo-lhe: ”estou todo f#%”#”. Ele já de partida diz-me: “vais dar a volta, vais dar a volta!”. Tenho então a Cristina à minha espera, em pânico por me ver naquele estado, desanimado, desorientado… Começa ela a tratar de mim, e a passar-me todas as mensagens de apoio que tinha recebido de Portugal, quando entretanto se junta a nós a Andreia que nos diz que a Sofia está a chegar e que temos que sair juntos para nos apoiarmos. Abençoadas palavras, abençoada Sofia!!! Troquei de roupa, comi um prato de Cerelac, vesti o impermeável Gor-tex e lá arranco na companhia da Sofia. Ainda debilitado, tento acompanhar o ritmo dela mas não estava fácil. As dores de ouvidos não passavam e quase não conseguia manter um trote!

Uns km à frente chegamos a Notre Dame, um cenário lindíssimo, cheio de luz, com tochas e uma multidão que só de pensar arrepia. Avisto o Jaime Sousa, a Andreia e a Cris, e como foi bom voltar a vê-los, ainda que só de relance. Ganho mais confiança e sigo na passada da Sofia (diga se de passagem que foi a mulher com quem passei mais tempo acordado J). Tínhamos delineado uma estratégia: quer a subir, quer a descer, a Sofia impunha o ritmo! E assim foi até ao fim…

Escalamos até ao Croix du Bonhomme, e o frio meteu a cabeça de fora. Tinha as mãos congeladas e só queria descer o mais rápido possível, para aquecer. Estava nevoeiro, e mesmo com o frontal ligado, a visibilidade era muito má. O pelotão ainda seguia compacto, e o silêncio era ensurdecedor! Nunca estamos sozinhos, mas sentimos uma solidão tremenda…

Chegados a Les Chapieux, e depois de um acenar para a câmara que a organização coloca ao dispor de quem nos quer seguir nesta aventura, lá abastecemos e seguimos fortes em direção a Itália, até Col de La Seigne. Sentíamo-nos bastante bem, a passo nas subidas e corrida nas descidas. O problema nesta fase eram os restantes atletas com quem nos cruzávamos, que não nos deixavam passar… Enfim, algumas atitudes menos dignas! Também faz parte!

Já de dia, e com os sentidos mais despertos, a saga continuava. Em Lac Combal as paisagens eram de cortar a respiração. Queríamos olhar para todo o lado, no entanto, qualquer distração poderia ser fatal, já que o piso estava miserável. O foco era o trilho! A saída deste abastecimento foi penosa para mim, o corpo não queria, a cabeça dizia para caminhar mas o trilho era bom para correr. A Sofia insistia comigo mas naquele momento não dava, estava em modo preguiça e simplesmente não corria 😉

Dali a Courmayeur eram 13 km. Sabia que tinha a Cristina à nossa espera, e como eu ansiava esse momento. Subimos sempre com uma boa passada e a descida de 9 km para a base de vida foi feita a bom ritmo, mas com a máxima de proteger os quadríceps! Durante este percurso, em Col Checrouit, fomos brindados com a famosa pasta, não estivéssemos nós em Itália! Duas de letra com o Fernando Ferreira, com Fernando Mendes e com o Bruno Macedo e lá continuamos a nossa prova. Enfrentamos uma descida em terra batida, muito técnica, com muito pó e finalmente o alcatrão de Courmayeur.

Fomos recebidos pela nossa Cristina, que foi incansável. Só de pensar que percorreu quilómetros com uma mochila de 30 litros às costas, carregada com tudo aquilo que eu precisava… Também ela penou!

Mudança total de roupa, uma boa refeição e algum descanso. Tudo a pensar que iria agora começar a segunda parte da prova. Faltava outro tanto de desnível positivo, no entanto, a moral estava lá em cima! Eu e a Sofia só tínhamos em mente conquistar Chamonix!

Fomos em busca dos refúgios, Bertone e Bonatti, o sobe e desce eram constantes e a paisagem era, mais uma vez, de cortar a respiração. O imponente monte branco lá estava, impávido e sereno, lindo e monstruoso, digno de uma paragem Facebook. O tempo estava mau, muito mau, frio, chuva e neve, um verdadeiro cenário de guerra no Bonatti. Mas o pior estava para vir: A descida para Arnouvaz foi horrível!!! Tanta, mas tanta lama, frio, muito frio… Entramos no abastecimento e, mais uma vez, o caos estava instalado. Nunca tinha visto tal coisa na vida. Apesar de não poder dar assistência, a Cristina lá estava à nossa espera, só para nos motivar e animar. Gelada, claro (quem a conhece sabe que odeia o frio J). Entramos na tenda e tentamos aquecer. Estávamos gelados, cheios de lama, mas com uma vontade enorme de enfrentar a próxima besta, a subida ao Grand Col Ferret!

Era obrigatório sair com calças impermeáveis e assim foi, vesti tudo, calcei dois pares de luvas e, depois de uma beijoca e um abraço à Cris, seguimos apreensivos. A Sofia estava confiante mas o que vinha pela frente era tudo menos inspirador de confiança. Continuava a chover e o frio aumentava. A sensação térmica era terrível, as mãos estavam congeladas, nem sequer a porra do telemóvel conseguia tirar do casaco. A Sofia bem que tentou, mas assim que conseguiu, o telemóvel morreuuuuu, tal era a diferença de temperatura. Apesar disto, foi a subida que até hoje mais gostei de faze Aquilo era simplesmente maravilhoso, quase que conseguimos tocar nas sapatilhas de quem vai no patamar acima de nós… AMEI! Os 2500 metros de altitude eram implacáveis, o frio e a neve eram por demais, estava congelado e neste momento só queria correr, correr e correr, o mais depressa possível para começar a baixar a cota e poder sentir novamente as minhas mãos. Entramos na Suíça e para evitar pagar roaming tive que desligar o telemóvel com a ponta do nariz. Agora pensem…

Os 20 km seguintes eram sempre a descer. Passamos La Fouly e seguíamos fortes. Chovia mas nada do outro mundo, e tínhamos mais 10 km de descida, em estrada, até começar a subida para Champex-Lac. Já estava farto da estrada e tinha as pernas muito massacradas. Passamos entretanto por um abastecimento “familiar”, na entrada de uma casa, onde nos serviram chá e café bem quentinhos. Atitude muito generosa daquela família, mesmo ao frio, não deixaram de lá estar a apoiar qualquer desconhecido que passava! Muito OBRIGADA!

A subida seguinte era curta mas massacrante, o terreno estava cheio de lama, tinha muitas raízes e estávamos já na segunda noite. A concentração estava em níveis muito baixos e foi somente a partir deste momento que deixamos de ter filas de atletas para passar. Que alivio! Éramos só os dois e o trilho basicamente!

Como se foi tornando hábito, ao entrar no abastecimento sorrimos para as câmaras de filmar, para acalmar o coração de quem nos seguia. Tínhamos chegado a Champex Lac e aqui ganhamos um novo companheiro de viagem… A vontade de comer ou beber tinha desaparecido há algum tempo, mas lá fiz um esforço para comer um caldo com pão. Enquanto isto, surge ao pé de nós a Alexandra, que acompanhava o Paulo Alves, dizendo que ele queria desistir. Sentia tanto frio e tinha tanta dificuldade em aquecer que queria desistir a 40 km do fim. Achava que não valia a pena arriscar a vida por um colete, dizia ele! Mas a conquista da meta é muito mais que isto. Claro que não o deixamos para trás e a partir daqui a viagem foi feita a 3! Tínhamos pela frente 3 picos, cada um deles com quase 1 km vertical.

Depois de corrermos com o famoso lago Champex do nosso lado esquerdo, entrar no trilho foi um instante, e minha gente, WTF, que parede, que monstro… Só temos esta perceção porque ao longe, muito longe, avistamos as luzes dos frontais dos outros atletas. Em fila indiana, com a Sofia no comando, aliás como sempre, lá fizemos o nosso caminho, focados na nossa missão e na enorme vontade de terminar a prova. Seguíamos fortes e íamos vergando o monstro a cada passo e a cada metro. Só queríamos conquistar mais um topo e chegar a Trient, onde mais uma vez a Cristina nos esperava. Na descida a Sofia impunha um ritmo forte de corrida e eu só pensava que ela nos ia matar J Entretanto, o Paulo ressuscitou! Sorriso a três para a câmara e entramos para reabastecer. A Cris sempre incansável, sempre pronta a ajudar, quer a encher os flasks, quer a ir buscar comida… Isto teria sido bem mais doloroso sem ela!

Estávamos bem confortáveis com o tempo de corte, cerca de 4h. Seguimos para a próxima parede! Lá atacamos de novo mais uma besta, mas o pior estava para chegar: o SONO! O primeiro a manifestar-se foi o Paulo, em Catogne. Enquanto a Sofia tirava uma peça de roupa para vestir ele adormeceu. Se estivesse sozinho bem que lá ficava! Passados uns minutos tanto eu como a Sofia cedemos também ao sono e ao cansaço. Não conseguíamos correr, estávamos a morrer de sono e sabíamos que tínhamos que dormir um pouco no próximo abastecimento. Só que chegar até lá foi um suplício. A luz do nascer do dia era ainda mais perturbadora. Perdemos mais de 1h nesta descida, que era tão boa para correr! Os km não passavam, a descida parecia interminável, um massacre e um desespero. Dormitávamos enquanto caminhávamos, uma loucura. Finalmente chegamos a Vallorcine, tristes, desanimados e mortos de sono. Mais um gesto para a câmara, um bom dia à Cristina que estava preocupada com a nossa demora, e pedimos que nos deixasse dormir um pouco. E assim foi, aterramos, literalmente. Imenso barulho à nossa volta, uma confusão desgraçada e nós aterrados. Dormimos 25 minutos e ficamos como novos, cheios de energia e com uma vontade enorme de seguir caminho. Tomamos café e umas bolachas e “siga dali para fora”. Tínhamos mais uma parede para vergar e seria a última…

Seguimos num trote forte, com as energias renovadas, depois de um longo sono de 25 minutos. Antes de iniciar a última subida toca a tirar a roupa. Estava calor e já não se justificava as calças impermeáveis, o GorTex, a camisola térmica e as luvas! Pelo caminho faço um direto para o Facebook, ligo à Cristina para que soubesse que estávamos bem e animados, e atendo algumas chamadas. Estava fresco que nem uma alface. La Flégère estava mesmo ali, era mais uma subidinha e acabava a tortura… Bebemos água no abastecimento e dali até a meta eram 8km sempre a descer, sempre a curtir… Num ritmo bem forte fizemos aquela descida, no início com uma inclinação brutal, que depois amenizou. Eu, o Paulo e a Sofia já só pensávamos em chegar o mais depressa possível a Chamonix, ao palco de todos os sonhos…

Ao entrar na vila de Chamonix, passamos a zona onde estava montado todo o apoio da organização para a prova, e no final da avenida estava a Cristina à nossa espera com a bandeira de Portugal na mão. A vila estava apinhada! Toda a gente nos felicitava. Batiam nos placares com uma força tremenda, gritavam por nós e por Portugal. Simplesmente de arrepiar… Cerca de 1 km até à meta com um ambiente extraordinário. Mais próximo da meta, os nossos amigos Chamonixenses, o Vitor, o Jorge, o Jaime, a Lucinda, a Ana Maria, a Andreia e a Joana, gritavam por nós, felizes por finalmente estarmos todos de volta a Chamonix. Tinha sido uma jornada bem sucedida para todos (100% de sucesso)! Curva contra curva e eis que avistamos o pórtico. A realização de um sonho estava apenas a uns metros de distância. O êxtase da multidão, o orgulho, o sentimento de dever cumprido e de gratidão para com todos os que nos acompanharam nesta viagem invade-nos o coração. Com euforia, cortamos e meta. Abraçado à Sofia, agradeço e digo-lhe: ”excelente trabalho!”.

De coração cheio penso: sonho concretizado… venha o próximo desafio… BYL!.